O primeiro livro escrito para adolescentes e adultos que li foi "O cão dos Baskervilles", um presente de um amigo muito mais velho "para iniciar minhas leituras de mistério", parafraseando sua dedicatória. Somente alguns anos mais tarde soube que Sir Arthur Conan Doyle, o escritor dessa história fantástica e criador do personagem Sherlock Holmes, o astuto detetive inglês, era médico.
Nada mais coerente do que um médico do século XIX para criar um personagem capaz de ter conhecimentos sobre boxe, fechaduras e a distância padronizada entre os postes de um determinado país. E saber unir estes conhecimentos a primeira vista inúteis e usá-los para formular uma boa hipótese para desvendar um crime.
Conan Doyle, por sua vez, dispunha de alguns instrumentos rudimentares e certamente muito tempo (dizem que ele escrevia nos intervalos entre as consultas, em seu consultório que não devia ser dos mais movimentados) para avaliar seus pacientes minuciosamente e construir um raciocínio lógico que explicasse suas queixas. Seu trabalho era, portanto, o mesmo que o de Sherlock Holmes: juntar informações a uma primeira vista desconexas ("Você vê, mas não observa" - diria o detetive) baseado em seu conhecimento prévio do que é relevante e criar a sua hipótese diagnóstica.
É pensando nisso que às vezes me sinto como o herói da minha adolescência, juntando essas peças vistas, mas que não tinham sido observadas. O senhor tem sensação de que as costas estão travadas pela manhã? Por quanto tempo o senhor tem essa sensação? O senhor tem dor no calcanhar ao colocar o pé no chão ao sair da calma? Calma, por favor repita isso que o senhor disse... recentemente teve um problema em um dos olhos, que ficou muito vermelho e muito doloroso? Por gentileza, fale mais sobre esse problema... foi em um dos olhos mesmo ou nos dois?
São várias as perguntas improváveis que o paciente vai ouvir, caso o reumatologista suspeite que ele tenha alguma espondiloartrite. Isto acontece porque assim como no caso de Conan Doyle, temos que acreditar muito mais na história do paciente e nos seus sintomas do que nos exames complementares. Afinal, cerca de 80% ou mais das pessoas com o HLA-B27 positivo não terão espondiloartrite(1). Assim como um quinto das pessoas absolutamente assintomáticas podem ter alterações na ressonância magnética de articulações sacroilíacas que poderiam sugerir a presença de uma espondiloartrite(2).
Sendo assim, saber interpretar adequadamente os exames complementares é fundamental. E isso só pode ser feito com uma adequada anamnese e exame físico, por um profissional experiente na área. Ainda que possa incorrer na possibilidade de que sua consulta seja julgada como "esquisita" por alguns pacientes. Afinal, como é que uma consulta sobre dor nas costas vai parar na pergunta "O senhor tem alguma micose na unha que está muito difícil de tratar?". Como diria Watson, o médico e amigo de Sherlock Holmes, em "O Cão dos Baskervilles": "Seus métodos de investigação são tão excêntricos..."
Se você gostou desse assunto, e tem interesse em saber mais sobre espondiloartrites, dor nas costas ou outras doenças reumáticas, acesse a seção "Além da dor", onde você encontrará mais textos sobre todos estes assuntos. Boa leitura!
1-Reveille JD. Major histocompatibility genes and ankylosing spondylitis. Best Pract Res Clin Rheumatol. 2006 Jun;20(3):601-9. doi: 10.1016/j.berh.2006.03.004. PMID: 16777585.
2-Barnsley L, Paiva J, Barnsley L. Frequency of pertinent MRI abnormalities of the sacroiliac joints of patients without spondyloarthropathies: a systematic review of the literature. Skeletal Radiol. 2021 Sep;50(9):1741-1748. doi: 10.1007/s00256-021-03719-6. Epub 2021 Feb 6. PMID: 33547535.