Uma mulher de cerca de 40 anos se senta em minha frente após os meus cumprimentos habituais, quase ritualizados. Ela solta um longo suspiro enquanto puxa a cadeira, faz movimentos desajeitados e o cachecol se prende ao encosto. Ela provavelmente vai falar tudo de uma vez.
- Eu vim aqui para uma segunda opinião – ela diz de súbito, enquanto se senta e puxa a cadeira para frente pelo meio das pernas.
- Pois não...
- Eu fui diagnosticada com espondilite há uns 5 anos, e meu médico não pede exames de imagens direito. Eu peço a ele que queria fazer mais ressonâncias para ver a minha doença, mas ele fala que não precisa. Aí eu... - Minha mente fica inquieta: devo falar agora mesmo que provavelmente o médico dela está certo, ou não? Após alguns instantes de deliberação comigo mesmo, opto por não dizer nada ainda, e deixar essa informação para o final da consulta.
O restante da interação se passa como habitualmente. A paciente se sente inicialmente um pouco desconfortável, pois não respondo de imediato a pergunta que ela trouxe logo no início da conversa, mas aos poucos fica claro que as dúvidas que ela tem são alimentadas por vídeos (curtos) em redes sociais, ou informações de pacientes com algum quadro semelhante (habitualmente em grupos de mensagens).
Antes de contar o final da história, aqui cabe uma pequena digressão filosófica, que tive durante o atendimento e depois dele...
O filósofo Theodor Adorno descreveu nos anos 1940 a teoria da indústria cultural, que parece explicar perfeitamente a ocorrência de consultas como esta.
Segundo Adorno, a produção da cultura havia deixado de ser voltada a gerar pensamentos e questionamentos, e seria o simples desfrutar rápido de uma arte qualquer sem grandes reflexões. A indústria cultural opera com produtos padronizados, com fórmulas relativamente fixas.
Pense nos livros mais lidos atualmente, como os de Nicholas Sparks, por exemplo, ou filmes de super-heróis, como qualquer um da Marvel. Não é muito difícil perceber que todos seguem um roteiro razoavelmente previsível. No caso dos livros, uma tendência atual são os capítulos que alternam os narradores, deixando para o final de cada um o gancho para o capítulo seguinte do mesmo narrador. É o que torna o livro um “page-turner”. Nos filmes, a clássica fórmula: uma situação inicial de equilíbrio, seguido de uma chamada à ação. Um conflito, o surgimento de um antagonista, a quase derrota do herói e finalmente a resolução da tensão, com um belo final feliz, mas espera... nem tanto assim... fica sempre uma deixa para o próximo filme da franquia (talvez o sétimo ou oitavo).
Em nenhum momento foi exigido do leitor ou espectador qualquer raciocínio, somente a absorção passiva de informações. Isto é indústria cultural.
É o que muitos fazem atualmente ao “consumir conteúdo”. A contemplação cautelosa dá lugar à simples visualização e um like. O conhecimento dá lugar à informação.
É o excesso de informação, habitualmente em vídeos curtos, que me incomoda ao falarmos de saúde. É claro que há excelentes médicos que fazem vídeos muito bons (e até tenho amigos que os fazem!), com informações atualizadas e edições primorosas. E por conhecê-los, também sei que a intenção de fazer tais vídeos é justamente educar os pacientes da melhor forma possível. Entretanto, a forma como a mensagem é entregue é tão importante quanto o conteúdo.
Sendo assim, o formato em que a mensagem é entregue é inapropriado. Assistir a um vídeo curto sobre espondiloartrite, logo após um reel sobre como desenhar um gatinho, seguido de um outro sobre os melhores rooftops da cidade raramente se fixará à memória de alguém. E se ele se fixar, será uma quimera de pensamentos, da forma que o nosso cérebro faz de melhor. Não se sabe mais se a melhor forma de começar a desenhar é pela manhã, afinal, suas articulações podem estar rígidas, ou à noite, quando você poderá aproveitar a bela vista da cidade em uma das melhores baladas. Mesmo porque você não poderá enxergar direito, devido à inflamação que a doença auto-imune pode causar nos seus olhos... ou isso seria devido às luzes da balada? Ou seriam da toxoplasmose pelo contato com os filhotes de gato?
Em segundo lugar, ao se conversar com uma população enorme como a que pode ser alcançada através da internet, é impossível conectar-se a cada pessoa individualmente. Mas obviamente é o oposto do que é dito online. Diz-se que o tratamento é individualizado, para cada uma daquelas milhares de pessoas às quais o vídeo é endereçado. Isso carrega em si uma contradição perceptível somente ao afastar-se um pouco do raciocínio da indústria cultural...
Voltando à consulta, confesso que levei um tempo maior que o habitual para explicar à paciente “o rio das espondiloartrites”, um conceito que deverá ficar para um próximo texto. Mostrei a ela ainda um artigo científico atual sobre exames falso positivos com pet-CT. A paciente tinha uma altíssima capacidade de raciocínio, e antecipou adequadamente o resultado dos estudos, mesmo não sendo da área médica! Ao final, parece que ela entendeu os motivos para que o médico dela não pedisse os exames, e me pareceu bastante satisfeita com o que entendeu do próprio quadro. Mas ficou ainda mais grata por sair do consultório carregando nas mãos um pedido de ressonância magnética da coluna lombar...